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quinta-feira, 12 de abril de 2012

É UM DIA TRISTE. MAS AS FLORES DE MARCELA ENSINAM QUE A ESPERANÇA PRECISA RESISTIR

Autor: Cleber Benvegnú
É um dia triste. Pessoalmente triste. Não escondo que a decisão do STF a respeito dos fetos anencéfalos me afeta, me incomoda, me desanima, me desesperança. A Rádio Gaúcha me convidou para estar no programa do Lauro Quadros desta manhã, a respeito do assunto, mas um compromisso profissional me impediu de estar presente.
Não julgo que os meus sentimentos pessoais sejam superiores aos dos que defendem esse aborto. Apenas revelo, sinceramente, o que vai ao coração. Não conseguirei jamais julgar como ato humanista – ou avanço civilizatório – a decisão de tirar a vida de um feto, mesmo que, eventualmente, ele tenha má formação cerebral. E se não é humanista para o próprio feto, também não será para a mãe. É violento, é covarde, é triste, enfim.
Perdoem-me quem pensa diferente, mas, dentre tantas teses, religiosas ou não, eu fico imaginando mesmo aquelas pinças furando e tirando o pequeno ser humano em pedaços de dentro do útero, sendo lançado ao lixo. Ninguém o vê, e porque não é visto, não conta aos nossos olhos, ao nosso coração, à nossa consciência. Vira uma tese jurídica tão-somente. Um pedaço de outro corpo. Um suposto direito de outrem. Um amontoado de ossos e carnes que a humanidade tem convicção de que merece ser desprezado. Lixo nele!
E quem ousa defender o contrário, o que ouve? Isso é religião, sai pra lá! Vai dobrar joelhos longe de mim, lá escondido em seu templo, com sua turma de irracionais da fé. Não apele desse jeito! Apelar, vejam como anda esse raciocínio, é querer enxergar o aborto em sua crueza real. Em sua materialidade, em sua verdade. Isso seria insuportável, enquadrado como argumento apelativo. A razão, vejam quão democrática é tal posição, estaria tão-somente na tese que manda limpar o feto do mundo. Porque ele não tem cérebro, porque ele vai viver pouco, porque ele não teria viabilidade.
Quem se enfileira ao lado dessa mesma opinião que defendo, também recebe outra pecha: a de insensível. Se fosse com a sua mulher... Ora, ninguém nega a dor de manter uma gravidez nesses termos, mas os consultórios de psiquiatras estão abarrotados de mães com traumas por abortos motivados. Na época do acontecimento, o fizeram por explicações aparentemente racionais e utilitaristas. Estavam convictas. Depois, passado algum tempo, e mesmo sem influência externa ou religiosa, notam que a dor pode estar sendo ainda maior. Sentem culpa mesmo sem que ninguém as tenham culpado.
Agora, tente procurar se as principais revistas do país, por exemplo, já se interessaram em ouvir, mesmo que anonimamente, mães que abortaram e se arrependeram. Não. Nada. O que vai na capa é um desfile de atrizes e famosas supostamente convictas com o aborto que fizeram. Eba, viva, eu abortei e estou feliz, façam o mesmo – essa é a mensagem.
Vejam que, até aqui, não lancei mão de um único argumento religioso. Poderia fazê-lo, católico que sou – isso porque, ao menos por enquanto, não está proibido de exercer a religião em nosso país. Mas estamos diante de uma decisão de caráter humanitário, laico, plural, que tem a ver com o tipo de sociedade e de ordenamento jurídico que queremos. Mesmo assim, é legítimo que católicos também expressem suas opiniões. Ou deveriam silenciar em favor dessa suposta democracia ateia que muitos querem criar?
A propósito: bem levantou o ministro Lewandowski em seu voto. Não é tarefa do Judiciário decidir sobre isso. É atividade legislativa pura, não jurisdicional. Os juízes não precisam dizer o direito, posto que está dito. O que fazem é, então, desdizê-lo. Os senhores ministros deveriam buscar o voto popular, não a toga, se quisessem fazer valer suas convicções sobre essas pautas. Eles não podem substituir-se à Constituição e à legislação infraconstitucional vigente, senão que tão-somente interpretá-las e fazer com que sejam cumpridas. Foram além, muito além. Ou diria melhor: foram aquém.
Vejam, e convido especialmente meus colegas do Direito para que atentem a esse ponto, o que disse Lewandowski:
“Caso o desejasse, o Congresso Nacional, intérprete último da vontade soberana do povo, considerando o instrumental científico que se acha há anos sob o domínio dos obstetras, poderia ter alterado a legislação criminal vigente para incluir o aborto de fetos anencéfalos, dentre as hipóteses de interrupção da gravidez isenta de punição. Mas até o presente momento, os parlamentares, legítimos representantes da soberania popular, houveram por bem manter intacta a lei penal no tocante ao aborto, em particular quanto às duas únicas hipóteses nas quais se admite a interferência externa no curso regular da gestação, sem que a mãe ou um terceiro sejam apenados”.
Adiante, disse mais:
“Nessa linha de raciocínio, a tão criticada - e de há muito superada - Escola da Exegese, que pontificou na França no século XIX, na esteira da edição do Código Civil Napoleônico, legou-nos uma assertiva de difícil, senão impossível, contestação:  In claris cessat interpretatio. Ou seja, quando a lei é clara não há espaço para a interpretação”.
[...]
“Destarte, não é lícito ao mais alto órgão judicante do País, a pretexto de empreender interpretação conforme a Constituição, envergar as vestes de legislador positivo, criando normas legais,  ex novo, mediante decisão pretoriana. Em outros termos, não é dado aos integrantes do Poder Judiciário, que carecem da unção legitimadora do voto popular, promover inovações no ordenamento normativo como se parlamentares eleitos fossem”.
O outro aspecto jurídico da questão é o precedente que a decisão abre. Fica definido que feto anencéfalo pode ser abortado. Mas essa mesma linha interpretativa vale para um feto que porventura não tenha os dois braços, as duas pernas e os dois olhos? Ou, então, que não tenha o nariz? Ou, então, que tenha uma má formação em seus órgãos sexuais? Ou, adiante, que tenham uma síndrome de qualquer espécie? O aborto se legitimaria também nesses casos?
O que quero dizer, e o que ensinou o voto de Lewandowski, é que as decisões não são dissociadas de repercussões. Repercussões concretas, reais. Uma abertura à interpretação legislativa dá margem a outras. Pela mesma porteira jurídica que legitima o aborto do anencéfalo podem entrar, portanto, o aborto de fetos com outras espécies de má formação. E disso para uma tendência de eugenia – de limpeza genética – é um passo muito curto.
Nas palavras de Lewandowski:
“É fácil concluir, pois, que uma decisão judicial isentando de sanção o aborto de fetos portadores de anencefalia, ao arrepio da legislação penal vigente, além de discutível do ponto de vista ético, jurídico e científico, diante dos distintos aspectos que essa patologia pode apresentar na vida real, abriria as portas para a interrupção da gestação de inúmeros outros embriões que sofrem ou venham a sofrer outras doenças, genéticas ou adquiridas, as quais, de algum modo, levem ao encurtamento de sua vida intra ou extra-uterina”.
E vejam essa informação que o ministro traz:
“Importa trazer a lume, ainda, a Portaria nº 487, de 2 de março de 2007, do Ministério da Saúde, que reflete a preocupação das autoridades médicas com o sofrimento dos fetos anencéfalos, os quais, não obstante sejam dotados de um sistema nervoso central incompleto, sentem dor e reagem a estímulos externos”.
Não estou apontando o dedo para quem vive esse dilema, tampouco para quem praticou o aborto. Tenho amigos que já decidiram nessa direção, e nem por isso deixaram de estar entre meus afetos. Creio na boa-fé dos que defendem o aborto de anencéfelos, pelo menos da maioria deles. Mas a legitimidade de quem está do lado de lá é a mesma de quem está do lado de cá, inclusive se usasse argumentos religiosos. E a sensibilidade humana, igualmente, não pode ser hierarquizada. Tanto que, como disse, sinto uma sincera tristeza ao ver a vida humana sendo categorizada.
Por fim, vou “apelar”. Se a questão que motiva os ministros é a inviabilidade da vida, deveriam buscar saber os inúmeros casos médicos em que fetos com má formação cerebral resistiram. A vida venceu, se impôs sobre as teses e elucubrações – como no caso de Marcela, relatada num documentário que teve a direção e o roteiro de Glauber Filho.
Fonte: http://wp.clicrbs.com.br/sensoincomum/2012/04/12/e-um-dia-triste-mas-as-flores-de-marcela-ensinam-que-a-esperanca-precisa-resistir/?topo=13%2C1%2C1%2C%2C%2C13

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